Monday, 27 October 2008

O Diário de Pandora

Editorial de Carlos Picassinos
Hoje Macau, 23-10-2008

Há problemas e há problemas no enunciado jurídico que ontem foi apresentado à sociedade local. O primeiro e mais imediato inaugura uma discussão, sobretudo, de natureza ética e de valores.
O argumento pode ser instrumental e acessório para a pertinência da discussão geral mas é sintomático. Prende-se, desde logo, com as medidas das penas propostas neste projecto de regulamentar a traição à pátria. 25 anos de pena de prisão para crimes de traição, secessão do Estado e subversão contra o Governo Popular parece manifestamente exagerado. E exagerado se compararmos com as penas reservadas aos crimes contra o bem jurídico que o sistema penal mais considera: a vida humana. Se no caso do homicídio a pena máxima prevista no Código Penal não ultrapassa os vinte anos de prisão – 25 se homicídio qualificado - é manifestamente incompreensível que em casos como os relativos aos crimes contra o Estado a medida se fixe nos 25. E mais inaceitável se torna quando, em situações de cúmulo jurídico, a medida sobe para os 30 anos. Mais estranho se afigura então quando o próprio Código Penal da RAEM tipifica crimes contra o território sendo a pena máxima ali plasmada de 15 anos.
Não é apenas, como se isso não bastasse, a questão da valoração do bem jurídico que aqui está em causa. Decisões deste tipo têm implicações imediatas também na própria finalidade da pena. Se a penalização se justifica como medida de prevenção geral, ou especial, e se se ampara na ideia de recuperação do indivíduo e consequente inserção legal e social, é de duvidar da legitimidade de um ordenamento jurídico que estatua penas de 25 ou 30 anos de prisão. Não há recuperação possível de um individuo se este é condenado, na prática, a uma vida de opróbrio e exclusão numa instituição de inspiração totalitária, própria de qualquer estabelecimento prisional.
Esta questão jurídica desvela interrogações de natureza filosófica e ideológica. É em Macau a vida humana mais valorizada do que a pátria?
Na China, conhecemos a resposta. Na RAEM, a proposta que o Governo agora levanta alimenta a questão. Como antes, aliás, a sentença de colarinho branco do ex-secretário das obras Públicas já alimentara.
Ora, não estará o Executivo aqui, com esta proposta, a destapar uma caixa de Pandora, a abrir portas a uma revisão draconiana das leis penais e a legitimar uma futura aproximação ao ordenamento jurídico chinês?
O retrato à situação da Justiça na RAEM que o Hoje Macau publicou na edição de ontem já deixava antever as fragilidades que atravessam a Justiça e registava a preocupação dos agentes com a evolução e a sustentabilidade do sistema.
Todo este argumentário se torna ainda mais significativo se atentarmos às várias declarações produzidas, ao longo deste últimos dias, em momentos e circunstâncias diferentes. Três pertencem ao presidente da Associação de Advogados e prendem-se, uma com a existência de escutas ilegais em Macau, outra com a intervenção de universidades chinesas e da MUST na revisão do Código de Processo Penal, e a terceira com a alegada inconsistência desta proposta de lei em matéria penal. Uma quarta declaração partiu do jurista Paulo Cardinal sublinhando a urgência de instituir na RAEM um regime geral de direitos fundamentais e, finalmente, uma quinta veio do investigador José Manuel Pureza acerca de um clima generalizado de pressão sobre a esfera de direitos fundamentais protagonizada pelos diferentes poderes, fruto de uma crescente paranóia securitária. Tudo isto só reforça o temor de que em curso esteja uma paulatina revisão das bases do ordenamento jurídico e um beliscão ao seu sistema de normas. Ou seja, uma lenta revisão dos valores dominantes na RAEM.
Há depois, nisto tudo, reflexões pertinentes mas já ligadas à táctica política do Executivo. Uma é sobre a tempestividade desta proposta de lei. Considerando o ciclo político que atravessamos e as incertezas sobre o rumo que a RAEM seguirá nos próximos meses, a regulamentação peca por tardia. Fosse agendada no primeiro mandato de Edmund Ho, antes de Hong Kong avançar com aquela malograda proposta que levou os tais quinhentos mil cidadãos à rua, e o processo teria certamente beneficiado em serenidade e maturação política. O agendamento do artigo 23 para esta altura permite especular que a decisão obedece menos a um imperativo jurídico, ou a uma convicção política, do que a uma determinação oportunista. Regulamentar o artigo 23º era uma promessa de sempre. Aproximando-se o final de dois mandatos importava legislar a qualquer custo. E o projecto aqui está.
Uma outra reflexão diz respeito à sua aplicação prática. Muitas vezes, o problema como em qualquer lado do mundo, não reside nos preceitos da lei, mora na prática. Parece ser consensual que este texto padece de algumas omissões, indeterminações e áreas cinzentas. Há questões, por isso, que urgem ser densificadas.
Uma delas prende-se com as normas relativas ao segredo de Estado. Pode Macau determinar o catálogo de segredos invioláveis da República Popular da China? E quem dispõe da autoridade para determinar esse catálogo?
Outro ponto repousa nas actividades que a China considera subversivas mas que na RAEM gozam de tutela jurídica, à luz do direito, por exemplo, à liberdade de culto. Que acontecerá, se esta lei entrar em vigor, a instituições como a Igreja católica ou a entidades como as Falungong, ou, noutro plano, a eventuais ONG’s ligadas à defesa dos direitos humanos? No caso da Igreja de Roma ninguém acredita, de boa fé, que a instituição possa ser alvo de qualquer retaliação ou perseguição política. Mas não será esta trémula certeza a justificar qualquer lacuna. É verdade que Florinda Chan ontem não soube responder à questão e se escudou no articulado que, neste particular, nada esclarece. Outra coisa não seria de esperar já que a resposta está longe de ser óbvia.
A questão que se coloca na liberdade de culto apresenta-se também no que concerne à liberdade de imprensa. O Chefe do Executivo foi ontem peremptório em garantir que esse direito não será beliscado mas entre os factos e as promessas estamos nós fartos de saber que passa uma retorcida realidade.
Acima desta série de reflexões, o mais relevante é a coloração política e filosófica do problema geral. Perante esta proposta de lei e face ao processo de revisão do Código de Processo Penal é legitimo perguntar para onde caminha a RAEM? Qual o projecto político que o poderes locais alimentam? E que estrutura jurídica lhe servirá de base?

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